sábado, 24 de novembro de 2012

O empréstimo

Éramos todos moleques, criados às custas de frutas roubadas do pé, brincadeiras de criança e banhos de córrego no final da tarde. Um grupo seleto de muitas meninas e alguns poucos meninos, desde muito cedo as mulheres já predominavam a pequena vila. Entre os garotos do grupo estava Tizinho, nosso mascote, Tizinho porque o nome dele era Denílson, mas era somente assim que conseguia chamar o tio Zildo da Farmácia, tinha a língua presa e um apelido mais grudado ainda, ficou para sempre, como todo nome sem jeito que recebemos sem querer.
A vida parecia pequena naquele lugar, pequena porque éramos pouco crescidos para entendermos a imensidão de ruas tão estreitas, na verdade, tornavam-se gigantes por suas histórias, estávamos sempre informados de tudo que acontecia,  como o desaparecimento do Diego em dia de Cosme e Damião, e a festinha de 6 anos da Gláucia  a menina mais bonita do bairro, que quando andava balançava os cabelos de um lado para o outro. Referências marcadas em nossas memórias.
O local dos grandes acontecimentos era na rua "E", imagino que era "e" de encantada, uma rua comprida, sem muito acesso e com gigantescos pés de eucaliptos na saída, que não era bem uma saída, mas parecia infinita mesmo assim, ao lado das grandes árvores havia um terreno abandonado com terra batida e marcas de areia no chão, e é falando sobre esse pequeno cenário de gladiadores mirins que inicio minha história aqui pelo meio, no campinho de futebol, onde tudo começou.
Era um campeonato decisivo, para os moleques uma Copa do nosso mundo encantado, na torcida as meninas vibravam, inclusive eu, com grito de guerra ensaiado na garganta e pompons de papel crepom nas mãos, em menos de três minutos para iniciarem a grande partida, um conflito que partiu um coração, o de Tizinho. Chateado por outro ter sido escolhido em seu lugar, Ricardo o encrenqueiro, gritou da beira do campo, para o atacante do time:
-  Luis não joga com o Tizinho não, porque ele não tem pai!
Em um único tom, todos disseram: Hóoo! Estáticos pela afirmação.
Os olhos de Tizinho se arregalaram, tamanha era a força de seu espanto, teve tremedeira, suadeira, ânsia de choro... E chorou.
- Você não pode dizer isso Ricardo, não sabe do que está falando! Gritou Andrea a prima do pequeno Tizinho que estava na arquibancada.
- Pouco me importa sua bobalhona! Diga então a todos o que eu ainda não sei!
- O Tizinho não tem pai, porque o pai dele já morreu! Desabafou a menina disparando seu olhar de defesa a todos que ali estavam.
A gurizada nesse instante chocou-se inevitavelmente, porque morrer no nosso entendimento de criança era uma tremenda tristeza, era um sumiço que se sucedia e que pouco entendiamos, só sabíamos que era algo muito ruim, e o pior, era para sempre. Todos os olhares se lançaram em uma única direção, aquele rosto no meio do campo era um menino tristonho. Foi nesse instante que uma voz amigável surgiu por detrás dos reservas:
- Tizinho, se você não se importar, posso te emprestar o meu pai. Falou Luis, um tanto desajeitado.
Uma outra voz  também disse: "É, eu também."
E outra disse: "Sim, eu também posso". "É eu também..." "Sim eu posso..." "Eu também..."
De repente todos no campinho começaram a sugerir um empréstimo de pais por tempo indeterminado, até o Bernardo que era criado pelo padrasto deu sua contribuição, nessa hora Tizinho se encolheu dentro dos ombros, estava desconsertado, era assim que ele reagia quando estava encabulado, achou aquilo tudo um barato, quantos pais ele teria para ir em suas reuniões da escola? Quantos presentes de Natal? E quantos irmãos ele teria dali em diante! A atitude da molecada foi motivo de comemoração, fizeram o maior tumulto como se  a oferta de todos aqueles novos pais fosse a vitória de uma grande final, e foi, em especial para Tizinho, que mesmo sem partida e muitos gols, não parava de sorrir.

- Carine Morais

8 comentários:

  1. Que delícia, Carine, tuas histórias tão cheias de riqueza humana e lírica!
    Beijo

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  2. Tatiana,
    Obrigada pelo carinho e por sua visita aqui!

    Beijo grande :*

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  3. Carine, li 2 histórias (contos) e adorei. Porque têm conteúdo e uma excelente narrativa.
    Esta, por exemplo, é de uma imensa ternura.
    Vi um teu comentário, de que gostei, num amigo comum. Foi por isso que vim aqui e, perante o que escreves, tinha que comentar.
    Beijinhos.

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  4. Olá Nilson,
    Fico muito feliz por saber que um comentário o trouxe até aqui, sinta-se em casa!
    Agradeço por suas palavras de carinho, volte sempre que desejar.

    Beijos!

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  5. Lindas lembranças desse tempo encantado. Criança é um mundo a parte mesmo. Aliás é esse o verdadeiro mundo, o mundo do encanto, assim como a rua E. Feliz de quem consegue trilhar a vida sem se desfolhar dessas lembranças e dessa maneira de viver. Um texto precioso. Parabéns! Abraços

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    1. É verdade Paulo!
      Infância é um mundo incrível e singular. Obrigada pelo carinho!

      Abraços

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