quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Saudade e flor

Conheci um senhorzinho, danado pra prosear, mastigava capim no talo pra poder passar o tempo. Enquanto falava seus causos antigos dava pra ver em seu sorriso a nostalgia daquela memória, contava da Rita nega que quando passava pela rua, levava no vestido a paixão que ele sentia no peito. O modelo que ela vestia era todo feito na renda, com florzinhas miúdas, alça amarrada nos ombros, riqueza de detalhes que só ele sabe contar. Tinha cheiro de alfazema nos cabelos, falha engraçada entre os dentes, uns cachos que não ficavam no lugar, voavam para um lado só, formando um par gentil de antenas. Quando dava Sete de Setembro e o vilarejo se juntava pra comemorar, essa era a melhor hora de namorar a Rita nega, que saía fugida pela janela de casa.
Era forró a noite inteira, fartura de comida que não acabava mais, bebida a vontade e sanfona também. Até hoje só uma coisa ele não se lembra se o primeiro beijo que roubou da Rita foi na praça a luz da lua ou escondido atrás da igreja. Sabe que nesse dia fazia um calor de moer e as ruas carregavam um perfume abafado, parecido com jasmim.
Hoje com 80 anos de idade, diz que viver tanto tempo não vale assim muito a pena, o que vale na verdade é aquilo que acontece no intervalo do tempo, a lembrança que não se apaga, o espasmo de alfazema no cacho de antena, a renda trabalhada na cor, o amor vivido pela Rita nega, o beijo roubado no dia da independência, a saudade sentida com cheiro de flor.

- Carine Morais

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O som do amor

Que som tem o som do amor?
Toque no chão das folhas de Outono,
Barulho do mar antes de dormir,
assobio do vento no pé da orelha,
O triscar das mãos que arrepia o pelo.
Então você dispara: 
Em nada disso o amor nos diz.
Te conto os porquês.
Quem ama escuta longe,
Tem ouvido aguçado,
é capaz de ouvir silêncios,
pedrinha demorada 
que cai dentro do poço.
Quando te pergunto o que tens
e você me diz que é nada,
sou capaz de ouvir o tudo
dentro do vazio que fala.

- Carine Morais

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Nasce, cresce, reproduz e voa


Na poesia não existe gravidade, existe gravidez da palavra, dela nascem alguns rabiscos, desenhos que viram letrinhas, muitas se juntam formando pares feito duplas sertanejas e para aproveitarem a deixa viram notas musicais. 
Afinadíssimas desde pequenas, cantam sons por aí, barulho de buzina, estalo de beijo, fala dos bichos, batida de coração.
Como tudo nessa vida, poesia também cresce, de letra e som vira palavra, vira frase, vira texto, música, tradução, só não morre porque voa, nela não há gravidade, nem do fim e nem do peso das coisas que caem ao chão, porque os versos flutuam e é preciso muito esforço para alcança-los, mais que esticar os braços, requer as pontinhas dos pés, poesia depois que nasce, não se aquieta, ela salta vida a fora, poesia dança balé.

- Carine Morais

Eternamente Leminski

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!


Fonte: Revista Bula 
(Os 15 melhores poemas de Paulo Leminski)
http://www.revistabula.com/posts/web-stuff/os-15-melhores-poemas-de-paulo-leminski

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O cheiro do chão

Segurou o garoto no colo e ele lhe perguntou:
- Pai o que são as estrelas?
- Estrelas são os olhos da noite, vê como elas piscam pra você?
O menino sorriu engraçado.
- E o nariz da noite onde fica?
- Ha! A noite não tem nariz! Falou com voz de pesar.
- Então a noite deve ser triste. Afirmou o menino.
- Porquê? Perguntou o pai com surpresa.
- Porque quando as estrelas choram e as lágrimas caem do alto, ela não pode sentir o cheiro do chão que fica, o melhor cheiro que existe.

- Carine Morais
(A vida nesse instante)

Natal da Maria

Ontem conversando com minha sobrinha de três anos, ela olhou para a árvore de Natal e disse:
- O papai já montou o Natal lá em casa!

Seria lindo se todos pudessem montar o Natal como ela. 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Entre sem bater

Aqui é lugar de amora, 
é lugar de amor, 
tem lugar pra todo mundo. 
É casinha simples, 
com paredes riscadas, 
são escritas com palavras. 
Tem cadeira de balanço, 
redinha preguiçosa, 
varanda linda com vista para o sol.
Tem pardal, tem sabiá, 
tem canário atrevido que namora
as tulipas existentes no jardim.
Sua base foi feita com carinho, 
toda cheia  de formosura, 
tijolos de prosa, piso de rima 
e por teto poesia.
Tem jiló com "g" e com "j", 
tem chuchu com "x" e com "ch", 
tem liberdade que voa, 
tem licença carimbada 
para ser o que quiser.
Por isso entre, 
mas tire os chinelos, 
o tapete é macio, 
faz cosquinha boa no pé que só, 
não se acanhe, se acomode,
risque as paredes, mas volte.
Tem amoras fresquinhas 
esperando por você.

- Carine Morais

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Pseudo - adulta

Quando era criança gostava de ser chamada de gatinha, me refiro ao tratamento dado pelos adultos quando se dirigiam a mim, ser tratada como gente grande era algo eminente entre os meus desejos, ainda que estivesse longe de ser. Fofinha era coisa de criança, bonequinha era infantil, princesa era comum demais, mas gatinha não, gatinha era adulto. Usava chupeta, mas queria ser gatinha, tomava mamadeira, mas queria ser gatinha, tinha medo de trovão, mas queria ser gatinha; era sublime e original até o dia em que fui desafiada: jogar a chupeta no lixo. Céus! era a coisa mais horrenda da vida, dormir sem a minha "pepeta", tatibitati de criancinha, mas eu era gatinha. 
- Que moça bonita, com uma chupeta tão feia! Disse meu vizinho adulto. Fiquei pra morrer. Imediatamente, joguei no matagal que crescia ao lado de casa, meus 4 anos de idade jamais permitiram tamanha ofensa, me livrei da danada; 1 x 0 pra mim. Caminhei por horas suaves, desfilei minha beleza sem chupeta pela tarde inteira, até que a noite chegou e com ela o pesadelo, dormir sem a borrachuda. A tristeza logo bateu, 1 x 1 para nós duas.
- O que você tem mocinha, porque não para de rolar na cama? - Dizia minha mãe preocupada.
- Nada não mamãe.
- Tem certeza?
- Tenho não.
- Há! já era de se imaginar e onde está sua chupeta?
- Joguei no mato.
- E porque a senhorita fez isso? Mamãe sabia me encher de gentilezas. Senhorita me fazia muito bem.
- Porque eu já cresci! Oras.
- É mesmo? Controlou o riso. Pois saiba que moça crescida nunca esconde quem ela é, e nem o que ela gosta de usar. Você gosta de sua pepeta não é verdade?
- Gosto sim!
- Então precisa ficar com ela até o dia que achar que é hora de deixá-la. É assim que as pessoas crescidas fazem. Está certo?
- Certo!
- Pois bem, aqui está. Abriu a mão que escondia por debaixo do cobertor.
- Uau! minha chupeta de volta!
- E sabe quem mandou entrega-la? O Senhor Osvaldo. Ele disse o seguinte: entregue isto para a gatinha que mora na casa verde. Só podia ser você.
Fui dormir aquela noite com milhões de sorrisos no rosto, depois daquele dia passei a usa-la somente antes de dormir, até chegar o momento em que tive que fazer como fazem as pessoas adultas, ao sentir que não mais precisaria, num belo dia, acabei por deixá-la.

- Carine Morais


sábado, 8 de dezembro de 2012

Confissão de uma estrela

Descobriu o teatro ainda na mocidade, o encontrou escondido por detrás de caixas de madeira, empoeiradas e aflitas esperando por suas interpretações, dentro delas estavam recortes de revista das grandes e renomadas atrizes, objetos de sua enormíssima inspiração. Ali dentro de casa ou na rua em que morava, criava-se seu pequeno palco, afinal de contas subir no velho caixote significava o início de seu derramamento teatral. E quanta presença! Ora, ninguém repetia as palavras de Scarlet em "O vento levou" melhor do que ela: "Mesmo que tenha de mentir, enganar, roubar ou matar, Deus é minha testemunha que nunca mais terei fome." abaixava-se segurando um punhado de terra invisível, tal qual a verdadeira cena do filme, depois de um breve suspense, ao por os pés no chão, recebia aplausos de si mesma.
Anos mais tarde, após estrondosa fama e aclamação do público, foi interrogada por uma jornalista  sobre quando havia descoberto o teatro. Respondeu solenemente: 
 -  Antes de conhece-lo o fazia por brincadeira, o descobri a sério, somente depois de louca.
 - Louca? Perguntou a jornalista confusa.
 - Sim, doida varrida! Esse era o diagnóstico da família e de todos que me viam encenar sobre um caixote. Foi aí que descobri que eu estava pronta.

- Carine Morais
Foto ilustrativa: misswallflower

sábado, 1 de dezembro de 2012

Eu pensei que morasse na poesia, mas é a poesia que mora em mim

Tentei recordar o dia em que fui apresentada a poesia, me refiro especialmente, àquela apresentação formal, com polidez e seriedade: ''muito prazer, poesia!'' mas talvez esse dia seja tão remoto, que já me escapuliu da memória ou quem sabe me senti tão a vontade e já achei que a conhecia, pode ter sido num sonho breve, comendo algodão doce ou numa brincadeira de roda, penso que a conheci cantando "escravos de Jó", porque eles jogavam Caxangá e Caxangá não faz sentido, mas pra mim ela era uma fruta. Quem sabe tenha sido brincando de amarelinha, me tornado a primeira menina a por os pés na lua, em último caso, se não fomos apresentadas pessoalmente, muito provavelmente uma árvore me contou. Lembro com carinho que a primeira poesia lida foi aos sete anos de idade, uma apresentação informal, lá estava ela, na cartilha de Português, seu nome era "Convite" de José Paulo Paes, me convidava a brincar com as palavras e brinquei, desde então nos tornamos companheiras, amigas de longo tempo, ela era para mim a casa querida que um dia eu quis morar, onde tudo é sempre novo.
Nosso encontro foi marcado pela contingência da vida, experiência concebida no ventre da palavra, um presente divino e por isso jamais pode ser esquecido. Pensando bem, a formalidade das apresentações pouco importa, primordial mesmo é a naturalidade do elo, o cordão umbilical que nos une. Eu pensei que morasse na poesia, mas é a poesia que mora em mim. 

- Carine Morais

CONVITE

Poesia é brincar com as palavras
como se brinca com bola, papagaio, pião.
Só que bola, papagaio, pião 
de tanto brincar se gastam.
As palavras não: 
Quanto mais se brinca com elas, 
mais novas ficam.
Como a água do rio que é água sempre nova.
Como cada dia que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?

- José Paulo Paes - 1995