Doralice sempre foi sonhadora, pessoa imaginativa do tipo passada, não dessas que se inclinava ao mundo, o mundo na verdade, era que sempre se desviava. Um tanto quanto distraída, para variar nascida no dia 16, data esta que pela numerologia, era marcada como o dia dos desastrados. Até aqui, alguma coisa fez sentido.
Tropeçava nos tornozelos, batia o dedo mindinho na quina do sofá, ao bocejar mordia a própria língua... Como? Ninguém sabia ao certo explicar, as coisas simplesmente não coincidiam com a realidade de Dorinha.
Tudo começou em sua concepção, seus pais em lua-de-mel, recém-casados e apaixonados, fizeram amor translúcido numa praia deserta, resultado: uma filha com cara de paisagem.
No maternal chegaram a suspeitar que aquele anjinho perdido fosse vítima de autismo, nada comprovado, Doralice fazia mais parte desse mundo do que muitos podiam imaginar.
No jardim de infância vivia rodeada de amigos, que com ela repartiam o lanche, os briquedos, as tarefas de casa, conversavam horas a fio, entretanto ninguém os via, o real motivo: eram todos imaginários.
Já no Ensino Fundamental, por volta dos 12 anos de idade, era a quarta aluna da lista de presença e sempre a última a responder, perdia a chamada, perdia a piada, ria por último, mas nunca ria melhor.
Tinha o sonho de ser atriz, mas no teatro do colegial seus papéis principais nunca eram maiores do que o de árvore coadjuvante.
Tinha o sonho de ser atriz, mas no teatro do colegial seus papéis principais nunca eram maiores do que o de árvore coadjuvante.
Entrou na adolescência como quem entra na sala da faculdade errada, na casa errada, no planeta errado, era vermelha de nascença, sempre envergonhada por suas mancadas. Motivo de chacota, zombaria, avacalhação.
Mas um dia, a coisa mudou de figura, Doralice se tornou mulher e como num transe de quem dormia enquanto andava, foi acordada para a própria vida, passou no vestibular de universidade renomada, ganhou bolsa de estudos no exterior, aprendeu inglês, francês, melhorou seu português, fez o básico de Alemão, formou-se em Direito, e como era de direito retornou ao seu país.
Mal a reconheciam, havia sido transfigurada, falava em público, não gaguejava, nem vermelha ela ficava, até seu aniversário passou a comemorar no dia 17, causou alvoroço na pequena cidade.
O que aconteceu com ela até hoje não se sabe, a menina Dorinha ou melhor dizendo, Drª Doralice, tornou-se tão misteriosa em sua sorte quanto em tempos antigos em seu azar, subiu ao palco da vida, descobrindo que tudo o que desejava era capaz de conseguir. A vida que não passava de tragédia, tornou-se um verdadeiro espetáculo e sem piadas ou gargalhadas, a metamorfose ambulante foi aplaudida de pé.
- Carine Morais
Canção: Metamorfose ambulante / Raul Seixas