terça-feira, 30 de outubro de 2012

Metamorfose ambulante

Doralice sempre foi sonhadora, pessoa imaginativa do tipo passada, não dessas que se inclinava ao mundo, o mundo na verdade, era que sempre se desviava. Um tanto quanto distraída, para variar nascida no dia 16, data esta que pela numerologia, era marcada como o dia dos desastrados. Até aqui, alguma coisa fez sentido.

Tropeçava nos tornozelos, batia o dedo mindinho na quina do sofá, ao bocejar mordia a própria língua... Como? Ninguém sabia ao certo explicar, as coisas simplesmente não coincidiam com a realidade de Dorinha.

Tudo começou em sua concepção, seus pais em lua-de-mel, recém-casados e apaixonados, fizeram amor translúcido numa praia deserta, resultado: uma filha com cara de paisagem.

No maternal chegaram a suspeitar que aquele anjinho perdido fosse vítima de autismo, nada comprovado, Doralice fazia mais parte desse mundo do que muitos podiam imaginar.

No jardim de infância vivia rodeada de amigos, que com ela repartiam o lanche, os briquedos, as tarefas de casa, conversavam horas a fio, entretanto ninguém os via, o real motivo: eram todos imaginários. 

Já no Ensino Fundamental, por volta dos 12 anos de idade, era a quarta aluna da lista de presença e sempre a última a responder, perdia a chamada, perdia a piada, ria por último, mas nunca ria melhor.

Tinha o sonho de ser atriz, mas no teatro do colegial seus papéis principais nunca eram maiores do que o de árvore coadjuvante.

Entrou na adolescência como quem entra na sala da faculdade errada, na casa errada, no planeta errado, era vermelha de nascença, sempre envergonhada por suas mancadas. Motivo de chacota, zombaria, avacalhação.

Mas um dia, a coisa mudou de figura, Doralice se tornou mulher e como num transe de quem dormia enquanto andava, foi acordada para a própria vida, passou no vestibular de universidade renomada, ganhou bolsa de estudos no exterior, aprendeu inglês, francês, melhorou seu português, fez o básico de Alemão, formou-se em Direito, e como era de direito retornou ao seu país.

Mal a reconheciam, havia sido transfigurada, falava em público, não gaguejava, nem vermelha ela ficava, até seu aniversário passou a comemorar no dia 17, causou alvoroço na pequena cidade. 

O que aconteceu com ela até hoje não se sabe, a menina Dorinha ou melhor dizendo, Drª Doralice, tornou-se tão misteriosa em sua sorte quanto em tempos antigos em seu azar, subiu ao palco da vida, descobrindo que tudo o que desejava era capaz de conseguir. A vida que não passava de tragédia, tornou-se um verdadeiro espetáculo e sem piadas ou gargalhadas, a metamorfose ambulante foi aplaudida de pé.



- Carine Morais
Canção: Metamorfose ambulante / Raul Seixas

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O plano de Isadora

Ele a seguia freneticamente pelas ruas do pequeno bairro, a perseguia insistentemente, cansativo e barulhento até chamar sua atenção.
Isadora, a menina alvo da perseguição  segurou-lhe por entre os pequenos dedos e disse olhando dentro de seus olhos: aposto que está pensando que sou sua mamãe,  não é? Não se preocupe, vou levar você comigo. E foi amor a primeira vista, um sentimento sem igual, aquela bolinha de pêlos lisinhos, possivelmente órfão de pai e mãe  se tornou seu grande companheiro, seu mais novo filho, um pequenino pintinho amarelo.
E agora o que fazer? pensava Isadora ao planejar uma forma mirabolante de levá-lo para dentro de casa. Seu pai, completamente conservador jamais permitiria que aquela criaturinha entrasse em seus aposentos, lembrou-se de um dia em que ele havia impedido a entrada de um cachorro em seu quintal. Sua mãe  dona de casa dedicada, diria certamente que aquilo era loucura, um desrespeito as ordens de seu pai. E foi exatamente com ela previu:
- De onde você tirou isso Isadora?! Onde foi que você pegou? Dizia a mãe assustada, temendo que o pai escutasse o piado do pequeno.
- Mãe eu não roubei! ele me seguiu até aqui, está sozinho pobrezinho, não tem ninguém, deixa eu ficar com ele, deixa vai, deixa! 
- Sabe que por mim não há problema, mas sabe bem como é seu pai.  Lamentava preocupada, passando uma pilha de roupas enquanto o pinto piava. A menina se entristeceu, e como num gesto de despedida, abaixou a cabeça  passando seu dedinho indicador por entre os pêlos do filhote. A mãe relutou.
- Porque não pergunta pra Receba se ela não quer ficar com ele? Ela é cheia de bichos pela casa e o pai dela jamais implicaria com a chegada de mais um. 
Rebeca era a vizinha encrenqueira da família,  a típica Felícia que adorava maltratar os animais. Enquanto sua mãe lhe fazia a proposta descabida, Isadora visualizava seu pequeno filhinho esmagado pelas mãos da garota perversa.
- Não! Isso é maldade mãe,  ela não sabe cuidar, ela machuca, bate, não sabe dar comida. Deixa ele comigo vai?
Comovida com o apelo da filha, decidiu concordar com o que pedia: está bem! fique com ele, mas dê um jeito de fazê-lo parar de piar, seu pai está vendo Jornal na sala e se ele escutar, você nunca mais irá vê-lo. A advertiu enquanto borrifava um casaco de Brim.
Isadora sorriu, repentinamente encheu-se de toda felicidade e posse de uma verdadeira mãe, ela temia perdê-lo e em virtude da intolerância de seu pai, resolveu fazer conforme sua mãe a pedira, se quisesse continuar com o bichinho, deveria acabar de vez com os seus ruídos, foi então que encontrou uma solução  e teve segundo ela, uma brilhante ideia. A medida que sua mãe se dedicava em sua tarefa, a menina cuidadosamente colocou o pintinho dentro de uma gaveta vazia e o trancou. Com o piado abafado seu pai não o poderia ouvir, e ali fechado e isolado, estaria seguro.
O pintinho que piava aflito começou a piar mais alto ainda, até que lentamente perdia suas forças dentro da gaveta escura e abafada, um piu a cada dois ou três minutos e nada mais se ouvia sair dali. A mãe distraída em seus afazeres, dobrava roupas a cantar, a menina abaixada e quietinha, com o ouvido grudado no guarda-roupas velho, pensava inocente e resignada, vislumbrando seu plano de o tê-lo para sempre: - acho que agora ele dormiu.

- Carine Morais

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Maria Dália Helena

Quando nasceu Madalena, um anjo adentrou a sala de parto e com vestes de fios dourados declarou em voz alta: esta menina será poesia!
Inclinou-se em direção ao médico, deu-lhe um tapinha nas costas e saiu pela janela, rumo ao céu celestial.
A mãe sem entender nada, ainda sob efeito da anestesia disse fraca, entontecida: vai se chamar Maria!
E assim começou uma bela história, já na porta do cartório o pai atarantado se recusou a registrar a menina:
- Se o anjo disse que será poesia porque diacho tem que se chamar Maria?
- Homem, não questiona, dizia a mãe agitada, com corte de cesariana na barriga e poesia nos braços: - o nome escolhi por causa da virgem santa.
- Mulher, profecia de anjo não pode ser ignorada, nossa filha tem carinha de flor rosada do campo, bonita feito Dália e assim deverá se chamar. Tem poesia maior que esta?
Nesse instante o tabelião já impaciente disse com voz abafada por detrás do vidro que o separava: se for pra respeitar o presságio do arcanjo, porque não coloca Helena, nome forte e de inspiração?
Os pais se entreolharam espantados e com olhos desconfiados exclamaram em uníssono tom: Alguém aqui pediu sua opinião?
Fez-se então um escarcéu dentro do cartório, o pai não queria Maria, a mãe não queria Dália e o funcionário descabido se negou a registra-la.
Foi preciso intervenção do padre da cidade que chamou os marinheiros de primeira viagem para uma conversa de decisão.
Primeira indagação do Olegário:
Mãezinha me diga cá uma coisa só, o anjo em sua aparição disse com afirmação que a menina deveria se chamar Maria?
- Seu padre, em verdade verdadeira, ele num disse não.
Segunda e última indagação:
Seu Antonio veja cá só uma coisa, a meu ver, é bonito de sua parte querer nome de flor, mas o senhor já pensou que rosa murcha e com o tempo perde a cor?
De repente caiu sobre os principiantes uma luz bem forte do alto dos céus, 
clarão tão alvo capaz de cegar a todos que ali estavam.
Era o anjo do prenuncio e em seu segundo surgimento falou-lhes com voz cantada:
- Presságio Divino não pode causar contenda, se há confusão de escolha da graça da pequena, porque não fazes uma junção? (Pluft!)
E sumiu deixando fumaça, feito trem na estação.
Estáticos, comovidos, o silêncio cobriu o recinto, sendo possível ouvir as batidas de quatro corações. O padre emocionado e como na cena de "O Rei Leão", levantou poesia nos braços batizando-a de Madalena.
Conforme mensagem do anjo bendito, a promessa se cumpriu, Madalena cresceu faceira, delicada em sua predestinação, seus sorrisos cheios de poemas, seu nome por si só já era a mais pura poesia e beleza igual a dela, nunca, em nenhum outro lugar, se viu. 

Carine Morais

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

No fio da vida

No fio da vida, 
um segue, 
para cada lado, 
o outro se vai 
e restam os "nós" 
que cada um 
vai tentando desatar. 
"nós" que apertam a garganta, 
que preenchem 
cada centímetro de instante, 
"nós" que nos atam, 
mas não desatam, 
sem deixar espaço para nós.


Duplamente poesia 
por: Paulo Sotter / Carine Morais
Imagem: Pablo Picasso

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Divididos

Isso tudo que nos prende, um dia desses de repente, ainda vai nos separar de nós. 

- Carine Morais

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Os pequenos que moram em nós


Ser criança é um estado de graça, condição que passa tão rápido quanto um estalar de dedos.
Ao contrário do que muitos pensam, criança não cresce com o tempo, ela simplesmente encolhe, vai saindo o adulto que temos e internalizamos a criança que há em nós.

Tem gente que encolhe e desaparece, ao invés de ser criança no corpo de adulto, torna-se idoso no corpo de um velho, fica amargo, resmungão e a medida que a idade chega, a infância gradativamente se esvai.

Alguns encolhem propositalmente para que caibam no coração, já outros tornam-se compactos, para se encaixarem direitinho na memória e vez ou outra recordarem o quanto ser criança é bom.

Infância sempre traz coisa boa, traz gosto de manga de vez com sal, traz jabuticabeira do vizinho, aquela que enchia nossos olhos de jabuticaba, literalmente, com um brilho incomum.

Infância traz banho na chuva correndo descalço pela enxurrada, traz bicho de pé com coceirinha boa, dente mole com medo de arrancar, traz piolho, catapora, picada de muriçoca, traz aposta pra ver quem chega primeiro.

Amarelinha no pátio da escola, pipa nas férias de verão, traz medo do escuro do lado de fora, mas aí quando crescemos descobrimos que não há escuro pior, do que aquele que possa existir dentro de nós.

Infância traz medo do boneco Chuck, do abominável homem das neves, do bicho papão, traz bola de gude em sol escaldante, esperança de presente no Natal (contanto que sejamos bons meninos). Traz vaca amarela que pulou a janela, a mesma que teve o vidro quebrado por um pestinha da esquina.
Traz apelido que pega, aquele que carregaremos pelo resto da vida, assim como aquela cicatriz no joelho da primeira queda de bicicleta ou da pereba de vacina no braço, marquinha essa que dói pra chuchu, falando nisso, infância traz Brócolis e Jiló no almoço, com todas as caras feias que fazíamos para comer.

Da infância carregamos traços fortes que marcam nossa personalidade, marcam o início da nossa existência, fase da qual contaremos as melhores histórias.

Meninice é lugar onde tudo é muito intenso, desde a espera por um brinquedo prometido (jamais prometa algo a uma criança que não possa cumprir, ela não desistirá de você) até a chegada de um novo irmãozinho, a descoberta de um novo vizinho, o primeiro dia de aula.

Para criança não existe “o dia”, existe o instante, o minuto, a eternidade, quando somos pequeninos, não calculamos a velocidade do tempo que nos encolhe e muitas vezes nos separa de nós, não imaginamos que uma das melhores fases da vida passe assim num piscar de olhos, que de repente os sapatos de nº 26 já não nos servem mais, que as roupas encurtaram e foram encolhendo assim como nossa inocência.
 
Talvez por essa ânsia de viver, desejamos crescer tão depressa, e isto está inconscientemente externado nas brincadeiras de casinha, de papai mamãe e filhinho, queremos ser gente grande, maiores do que já somos, desejamos descobrir o que está encoberto, a curiosidade grita, a fita métrica não nos poupa dos anos que passam rapidamente, crescemos, é então que ao invés de sermos crianças, estamos crianças, passamos crianças, como quem passa um dia no parque de diversões e a infância que deveria ser o mais aproveitado dos estágios, torna-se um ciclo breve, quase que comum, seguindo vida a fora, encolhida e secreta, mas sem jamais sair por completo de dentro de nós.

Carine Morais

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Poesia do grande amigo Kiko. Para mim é sempre um presente!

Fruta no pé


Pequena
pé que na
cidade
desenhou tua história
sabedoria de menina
delícia das amoras
intensa.

Pequena
pé que na
história
desdenhou a cidade
menina de sabedoria
amora de qualidade
imensa.

Tudo mais em suas folhas
troncos e raízes. 

Em meus olhos 
enlouquecidos
de te ler.

Tanta vertigem.

Por: Francisco de Assis

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Se...


"Se ao menos pudesse voltar a ser tão distraída, a sentir tanto amor sem saber."

A Menina Que Roubava Livros

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Inseguro


Não confirme balançando a cabeça;
Não olhe de rabo de olho, como dizia a sua avó;
Não suspire fundo quando alguém falar;
Não encare o chão enquanto conversa;
Não trema as mãos ao se apresentar;
Não fale em voz baixa ao ponto de ninguém te ouvir;
Não ande encurvado, com o mundo nas costas;
Não olhe para trás;
Não seja sério quando tiver que sorrir;
Não sorria quando o momento for sério;
Não concorde com tudo;
Não discorde de tudo;
Não se explique;
Não gagueje ao dizer seu nome;
Não dê tchau para quem não te viu na rua;
Não seja tão vacilante assim,
O mundo não espera quem hesita;
Não exponha suas fraquezas;
Segure a onda da alienação;
Agarre-a enquanto puder;
Se solte.
Não siga todas as ordens.
Encontre um meio seguro para não se contradizer.
Insegurança é um mar que te arremessa
E se não for esperto,
Ele levará você.

- Carine Morais

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A viagem

"A vida é como uma viagem ao centro do universo, só que para dentro de nós mesmos.” 
Sou e sempre serei uma eterna apaixonada pela existência das pequenas coisas,   deslumbrada por detalhes, pela simplicidade dos fenômenos naturais do dia a dia, me encanta o vento, o riso, a fala, a música e o tempo que tudo pode transformar. Não vejo o menor problema em escancarar meus gostos singulares, as vezes malucos e até boçais, nitidamente o simples me atrai, me puxa e me leva pra bem longe. Estou aqui e com a cabeça lá onde escutei uma canção que mexeu comigo, estou aqui e lá onde Judas perdeu as botas... (provavelmente perdendo as minhas também.)
Algumas idéias bem como algumas avenidas, não possuem parada obrigatória, pelo menos não aquela sinalizada com placa vermelha, erguida ao lado da esquina, é de se destacar que mesmo diante fechadas bruscas da vida, não temos a menor obrigação de interromper nossos sonhos, devemos e podemos ir mais distante, sempre em busca de chegarmos no melhor que podemos ser, como um ingresso ao núcleo da nossa essência, afim de nos aprimorarmos como seres humanos, num mundo não tão humano assim.
Em se tratando de obrigações, essencial mesmo é ter algo ou alguém por quem se apaixonar, é ser feliz até nas inconstâncias do caminho, é perceber o lado bom de refletir nos quebra-molas da vida, que sempre surgem para reduzir nossa frequência, uma forma despretenciosa de nos fazer relaxar. Fundamental é respeitar a própria sinalização e não se submeter ao stresse do dia a dia, ao engarrafamento das emoções que congestionam nossa sensibilidade, nosso bom gosto e alegria de viver. Se for para frear enquanto seguimos que seja as ideias contrárias, o negativismo e o rancor, se for para ultrapassar que seja o medo, a insegurança e os limites que só existem na imaginação, e como há de se chegar em algum lugar, que seja na melhor parte do nosso ser, pois o bonito que encontramos na gente, também reflete dentro e fora de nós.

- Carine Morais