Deitou-se perto da porta recostando-se sobre as patas, o tédio tomava conta do recinto, já não havia água e pedaços de ossos suculentos para deter-se da fome e solidão, fazia calor e uma luz que iluminava as gotículas de suor em seu focinho, inesperados jatos de água invadiram-lhe a janela, molhando deliciosamente seu pelo, com o anuncio da chuva que viria, nem tudo estava perdido, chuviscava por entre telhas velhas e mal encaixadas, sinal este de que seus donos voltariam, enquanto Nona havia sido esquecida pela décima vez.
Era uma tradição da família ter cachorros e não nomeá-los assim como fazem a maioria dos lares, naquela casa numerava-se os bichos como casas decimais, a primeira cadelinha de origem inglesa a receber um nome incomum, chamava-se Quinta, pelo fato de vir ao mundo numa quinta-feira comum de uma semana sem muitos acontecimentos.
Era uma casa antiga, com paredes descascadas pelo tempo, telha colonial e janelas de madeira, em sua frente um pequeno terreiro com terra batida e nos fundos um canteiro bem cuidado de alfaces e cheiro verdes. O chefe da casa, homem rústico e de gestos grosseiros saía para pescar enquanto sua esposa visitava as irmãs mais velhas, não tinham filhos, nem muitos vizinhos, apenas Nona uma cachorrinha mestiça que lhes supria a falta de crianças pela casa.
Em uma dessas andanças optaram por irem a pescaria juntos, a esposa muito desconfiada, não acreditava que o marido estava somente a pescar com os amigos, o rio onde costumava apurar grandes peixes, era atravessado por uma simples canoa e levavam pouco mais de um dia para retornarem as margens.
Havia três longos dias que o casal não retornava ao lar, enquanto Nona havia sido abastecida de alimentos por apenas algumas horas, apesar da liberdade de caminhar por entre os cômodos, era prisioneira entre paredes vazias, na cozinha um rádio ligado para lhe fazer companhia, no canto do quarto de hóspedes, um velho cobertor de lã para que pudesse se deitar.
Andava em círculos, dormia em boa parte do tempo, esticava em minutos de silêncios suas longuíssimas orelhas atentas, escutava passos, pressentia a volta, mas logo a noite chegava e Nona dormia.
Seus sentidos nunca a engavam e chover era um sinal de que voltariam, havia roupas no varal, precisavam distribuir pela casa baldes e bacias onde as goteiras caiam. A janela era alta, vãs foram as tentativas de fugir dali, arranhava as patas nas paredes e descia, escorregava mais uma vez, desistia, encarava a maçaneta e fechadura como se seus olhos pudesse abri-la ou como se a qualquer momento fossem gira-la pelo lado de fora.
A mesa de jantar poderia ser seu trampolim de saída, a mola propulsora no fundo do calabouço, no entanto outra tentativa mal sucedida, o radio fora arremessado ao chão, e nada mais se ouvia.
Horas mais tarde, ruídos de lamas espatifadas e ronco de calhambeque misturavam-se ao barulho da chuva, Nona levantou-se instintivamente, latindo por sobrevivência, finalmente a porta se abriu, o cheiro do campo lhe entupiu as narinas, os olhos aflitos buscavam reconhecer rostos, trejeitos, grosserias e a inconfundível voz de sua dona... Esperava para jogar-se em disparada, balançava seu corpo frenético em sinal de felicidade, mas era apenas o vizinho do final da rua, senhor de botas e chapéu amaçados, viera salva-la, estava comovido pelo choro na fresta da porta, pelo fato de a tê-la encontrado ali tão sozinha, uma vida dentro do abandono, cujos moradores, não se sabia.
- Carine Morais
Boa noite Carine, acabo de postar um texto sobre a infância. Em parte é graças ao seu incentivo. Está convidada a uma visita lá no Blog.
ResponderExcluirQuanto ao texto a cima é muito legal. Imagine que como animal o destino de Nona seria a selva: farejar, uivar, caçar, matar, morrer, dormir na chuva. No entanto esse destino foi desviado e como animal caseiro e próxima dos homens se tornou dócil. Vivendo no mundo dos humanos, em que tragédias sem culpados acontecem, quase morreu esquecida. Mas é também neste mundo que bons corações fazem boas ações a salvam uma cachorrinha. Sempre gosto de deixar minahs interpretações nesse tipo de texto.
Beijos
Oi!
ExcluirLi seu texto e o parabenizo mais uma vez, está um encanto. Obrigada por deixar sua visão sobre o texto, saiba que para mim a opinião de quem lê é bastante importante.
A Nona foi esquecida e para nós que amamos os bichos é muito duro permitir isso, porém por de traz de um mero esquecimento temos tanto a pensar, inclusive a parte que você mesmo ressaltou, há sempre um coração bondoso disposto a salvar uma vida do abandono.
Beijos, Daniel!
"... fazia calor e uma luz que iluminava as gotículas de suor em seu focinho, inesperados jatos de água invadiram-lhe a janela, molhando deliciosamente seu pelo, com o anuncio da chuva que viria, nem tudo estava perdido..."
ResponderExcluirAinda acredito que Nona terá um final de dia feliz, com aquela cara de boba, focinho molhado e rabo inquietante.
Prefiro acreditar como você mesma coloca, nem tudo está perdido, nem pra Nona e nem para ninguém.
Vamos crer nas boas chances. =)
Abraço.
Olá Jair,
ExcluirFico feliz com sua visita! Sinta-se a vontade para voltar outras vezes.
É muito bonito mesmo de nossa parte acreditar que nem tudo está perdido, que há sempre uma chuva na janela, o barulho de um calhambeque a nos mover e um coração a nos salvar do esquecimento.
Obrigada!
Beijos meus
Há muita gente que não cuida dos animais como deve ser...
ResponderExcluirDevias escrever um romance, pois a tua narrativa tem fôlego para isso e é deliciosa.
ESte teu texto/conto, aliás, parece o início de um livro.
Um beijo, querida amiga Carine
Olá Nilson,
ExcluirÉ uma tristeza saber que no mundo existem pessoas maltratando os animais.
Agradeço seu incentivo, me fez pensar em escrever um romance, tentarei. rs
Fico feliz que tenha gostado do texto e se lhe parece um livro fico ainda mais contente, de repente me permito continuar a história.
Obrigada pelo carinho!
Beijos
Una maravilla de Relato y de la fidelidad y ganas de sobrevivir de este lindo perro.
ResponderExcluirMuy buen Post.
Um abraço.
Olá Pedro!
ExcluirAgradeço de coração suas visitas ao blog, sempre tão cheias de ternura.
O bonito disso tudo, foi que Nona teve a sorte de encontrar um grande coração.
Abraços!