terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sapatos


A alguns dias atendi no trabalho um senhor com pouco mais de 80 anos, muito gentil, tinha firmeza nos olhos e sorria enquanto me pedia alguns ternos para provar.
Depois de certa indecisão optou por um tipo simples, na cor preta, que combinaria com varias peças e ocasiões.
Na hora de escolher que calça levaria, ficou em dúvida entre um tamanho e outro. Decidiu ir ao provador, mas somente após muita insistência para não levar um número errado.
Passaram-se 20 minutos e ele saiu cabisbaixo, dizendo:
É... eu acho que talvez seja essa aqui.
O que houve, o Sr. não gostou do modelo? Perguntei.
Não, na verdade não provei.
Sem entender direito, quis saber o motivo e ele respondeu:
“Se eu tirar os meus sapatos, não consigo mais colocá-los de volta.”
Não sei dizer ao certo o sentimento que me ocorreu nessa hora, me comovi, pensei no quanto o passar do tempo pode nos tornar frágeis e que aquilo que fazemos de maneira tão simples e corriqueira, pode ser o grande desafio de outras pessoas.
Depois de ir ao caixa ele saiu satisfeito, me sorriu de longe agradecido, levava na sacola um terno preto e uma calça tamanho 40, estava decidido, optou por número menor ou maior, não se sabe, mas torço até agora para que ele esteja certo.


- Carine Morais

Os pássaros



Os pássaros tocam violão, suas cordas são os fios dos postes
suas notas, as ondas elétricas, sua melodia, o vento,
sua canção escutada de perto provoca choques, no coração

Os pássaros tocam violino, friccionam os pés pequenos,
se colocam de pé como numa linda orquestra,
não há ordem certa, seguem a emoção

Os pássaros tocam trompete, no Jazz da mãe natureza
as vozes se misturam num Rehab,
um misto de simpatia e prazeres despertados logo pela manhã

Os pássaros cantam como ninguém, cantam porque nasceram para isto
poderiam apenas voar, poderiam apenas fazer seus ninhos,
criar seus filhos, pousar sobre fios, observando pessoas passarem
nas ruas a caminho do trabalho.

Os pássaros tocam magicamente, tocam por não existirem apenas por existir,
tocam para os que passam nas ruas e os observam a caminho do trabalho,
para os que de súbito se pegam a aprecia-los num instante,

tocam para quem sente, para quem voa sobre dois pés, alegre ou triste,
cantam e tocam a vida...


assim como os pássaros fazem.

Carine Morais

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Foi um prazer não te conhecer


Foi um prazer não te conhecer, porque te conheço bem mais do que pensaria conhecer, mais do que seus olhos verdes, conheci como enxergava a vida.
mais do que suas mãos, descobri os frutos que pretendia alcançar, mais que mãos compridas, descobri enternecida que elas amavam fazer o bem... A sombra das árvores, as pessoas ao seu redor, meus sorrisos mais sinceros que por noites foram seus, eram sua recompensa.

foi um prazer não ouvir sua voz ao telefone, assim fiquei a imaginar como seria se sorríssemos ao mesmo instante, sem ter que dizer tchau, até logo, até mais... não sofreríamos com quem desligaria primeiro e com o tempo passando devagar até que nos falássemos mais uma vez. Você não me disse pessoalmente, em algumas circunstancias: vá em frente, você vai conseguir! Mas me deu todos os motivos para acreditar que tudo isso seria possível... e o mais incrível, sem que pudéssemos nos tocar, fomos tocados como aqueles que se conhecessem de uma outra vida.

Foi bom não ter recebido seu abraço, assim não houve despedida e talvez o ultimo dos abraços nos envolveria e então somente ele restaria para que lamentássemos todos os outros que deixariam de existir. Não te busquei no aeroporto, não confundi sua chegada em outros rostos, nem tive meu coração disparado pelo emoção de vê-lo, mas desejei que esse dia chegasse e ele está sempre a chegar no meu pensamento, porque só um desejo sincero é capaz de mover os impulsos mais secretos.

Não te apresentei aos meus pais, minha família, meus desenhos, meu cachorro e todos os meus motivos de orgulho, mas te apresentei meus sonhos para que pudesse morar neles e assim construímos uma casa indestrutível pelo tempo.

Não emaranhei seus cabelos com minhas mãos, mas fiz o possível para desembaraçar seus medos, acalmar seus nervos, sempre tão a flor da pele.

Foi um prazer não te conhecer porque as noites de entrega seriam como formigas que passam despercebidas, e no entanto se tornaram grandes pelo amor dedicado sem interesses.
Não ter te visto me trouxe espanto por não entender os motivos que o fizeram não vir até mim, por outro lado fui tomada pelo alívio de saber que hoje o conheço não só pelo que vejo ou pelo que talvez nunca verei. Não nos conhecermos, não sermos apresentados e ainda assim vivermos o amor, foi a maior prova de que pertencemos um ao outro como dois seres estranhos e íntimos, num entendimento que vai além do conhecimento, e isto é revelado a poucos.


Carine Morais